ESPIRITUALIDADE LITÚRGICA

Também na vida vos revistais daquele que vos revestistes no sacramento (Santo Agostinho)


INTRODUÇÃO
Santo Agostinho afirma que a força do sacramento consiste na vida nova que começa no tempo presente e atingirá sua plenitude na ressurreição dos mortos. Ao unir sacramento e vida em sua dimensão presente e futura, dá uma lição de espiritualidade litúrgica, interligando liturgia, história e escatologia. Na sua visão, o presente está imbuído do escatológico, que modifica e qualifica a história, mas só atinge sua plenitude numa dimensão que ultrapassa a história.
Hoje em dia este tema atrai nossa reflexão. Por isso, a espiritualidade litúrgica conquista um lugar privilegiado, na medida mesmo em que a Liturgia vai ganhando espaço e se tornando um assunto que todos procuram entender mais para vivenciar melhor.
Quando falamos de espiritualidade litúrgica, estamos tratando de uma qualidade de vida espiritual necessariamente englobada na vida cristã, que tem também toda a sua base antropológica. Por isso, gostaria de tratar o tema em três momentos, abordando primeiramente a espiritualidade, depois, a espiritualidade cristã e, por fim, a espiritualidade litúrgica.
A noção de espiritualidade é moderna e como tal não se encontra nos antigos”, pois é de origem recente”. Tanto as correntes filosófico-religiosas, como a tradição bíblico-teológica a desconheceram. No mundo religioso moderno começou-se a se falar em espiritualidade nas mais variadas formas, como, por exemplo, espiritualidade medieval, espiritualidade moderna, espiritualidade presbiteral, espiritualidade laical, etc. e hoje, nos propomos a definir espiritualidade litúrgica.

ESPIRITUALIDADE DO PONTO DE VISTA ANTROPOLÓGICO
O conceito de espiritualidade tem a ver com espírito. A respeito do que seria o espírito em nós, Jacques Guillet diz que em todas as línguas clássicas e bíblicas, espírito é um termo com sentidos múltiplos. Podemos, em forma de síntese, defini-lo da seguinte maneira:
Espírito tende sempre a designar num ser o seu elemento essencial e inaferrável, aquilo que o faz viver e aquilo que dele emana sem que queira, aquilo que em grau máximo é ele próprio e aquilo de que ele não pode dispor como dono.
Portanto, não podemos tratar a realidade humana sem fazer referência ao espírito. Desde o nous da filosofia clássica grega (Anaxágora e Plotino), até o sentido moderno em Hegel, uma coisa fica bem clara: “o homem se define através do espírito.... Um só e exclusivo caminho existe para que... ande à busca da própria definição: aceitar-se como um fenômeno unitário cujo centro reside no espírito”. Desta forma, o ser humano procura encontrar no próprio espírito, um ponto absoluto de referência para tudo o que é maior do que ele mesmo e a partir do qual ele julga tudo em sua volta. De fato, se trata de um caminho em busca da verdade. Conforme Von Balthasar, o espírito em nós deseja ser realizado e tornar-se conteúdo total em tudo o que é relativo. Neste ponto, ele se torna a fonte das decisões humanas. O amadurecimento do pensamento filosófico delineia uma relação em que o espírito humano se deixa conduzir pelo Absoluto, “entendido como Espírito que tudo comanda e tudo mede em si e por si mesmo”.
Aqui devemos fugir de toda oposição entre corpo e espírito. É mais exato se falar de homem espiritual ou de corpo espiritualizado. O que se quer afirmar é uma realidade que abarca a totalidade do ser humano, e que nesta totalidade, corpo e espírito compõem uma unidade integral, embora sejam elementos que não se confundam, também não se separam, pois é no corpo que expressamos o que realmente somos e sentimos. Muito se tem falado sobre isto, para se revolver a questão de uma espiritualidade que opôs corpo e espírito, dando-lhes valores até contrapostos. Prefiro usar a termo corporeidade para expressar a unidade fundamental do nosso ser.
Então, mesmo antes de se falar em fé, podemos intuir que o espírito faz parte da antropologia, pois todo homem é impulsionado por algo que faz dele mais do que um organismo físico. Trata-se do movimento da vida, que se traduz em sentimentos, pensamentos e paixões. Uma outra forma de nomearmos o espírito encontra-se na palavra “coração”, como entende Jean-Yves Leloup: “..não se trata de coração físico, tampouco de coração afetivo e emocional, mas do coração como centro de integração de todas as faculdades da pessoa; esse coração, centro do homem – que é testemunhado por quase todas as grandes tradições da humanidade”. É como tocar naquela essência que, quando se perde, a gente cai no vazio.
Portanto, espiritualidade deve ser entendida em referência à estrutura humana, não como alguma coisa que se sobressai ou algo acidental. Esta estrutura deve abranger todas as dimensões da pessoa em suas relações globais, sem excluir nada. Seria, portanto, o resultado da integração de todas as dimensões da pessoa no seu processo de atuação no mundo. Sem dúvida, podemos falar de integração afetiva, comunitária, psicológica e intelectual. Isso só acontece, quando somos movidos por algum espírito que dá unidade ao que somos, queremos e fazemos, repercutindo, assim, na identidade da pessoa e da sociedade onde ela vive. Por isso também, é que podemos dizer sem medo de errar, que a espiritualidade dá o “eixo” da pessoa e do sistema social.
Então, podemos definir espiritualidade, segundo Von Balthasar, como: “a atitude radical prática ou existencial que é como resultado e expressão da auto-compreensão do homem... como ser eticamente comprometido”.

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
O ser humano é essencialmente espiritual, e a espiritualidade é a atitude radical prática de quem se deixa guiar pelo espírito. Então, que espírito norteia as atitudes cristãs? É o Espírito Santo, expressão suprema do amor e da comunhão entre o Pai e o Filho. Trata-se, então, da relação entre o homem e o Espírito Santo, a partir do seguimento de Jesus Cristo, tendo como parâmetro o Evangelho. Como diz São Basílio Magno, “dá-se o nome de espiritual a quem não vive segundo a carne, mas sob a moção do Espírito de Deus”. Como vimos, o que está em jogo é a vida como um todo, e não apenas uma parte dela. Portanto, toda a vida do cristão é pautada pelo Espírito Santo. Necessariamente tem como referência a Jesus Cristo, o Mediador, pois a relação entre o Espírito Santo e o cristão não se dá sem referência a Jesus Cristo, por dois motivos. O primeiro, é que Jesus é o modelo de inabitação do Espírito, que nele atua de forma plena. Em segundo lugar, o Cristo Ressuscitado deu-nos o seu Espírito, que, por sua vez, atua em nós. Desta forma, podemos viver, segundo o Espírito dele. Neste sentido, lemos em São Cirilo de Alexandria que “Cristo não recebeu o Espírito Santo para si mesmo, mas para que o recebêssemos nele... com efeito este Espírito, que é seu, nos é dado nele por ele”. O papel, portanto, da mediação cristológica para que haja a inabitação do Espírito em nós é fundamental. Aqui devemos considerar como ponto de partida da espiritualidade cristã a fé, como resposta integral à auto-comunicação de Deus, levando a pessoa a uma decisão fundamental que engloba todas as dimensões da vida. É por isso que sem uma referência fundante em Jesus Cristo, não existe espiritualidade cristã e nem intimidade duradoura
com o Espírito Santo. Um autor do IV século expressa bem esta mediação cristológica:
Todos os que são considerados dignos de se tornarem filhos de Deus e renascerem do alto no Espírito Santo, trazendo em si a Cristo – que os ilumina e os regenera – são guiados de modos diversos pelo Espírito e conduzidos invisivelmente pela graça, tendo no coração a paz espiritual.
A expressão trazendo em si a Cristo mostra que sem Jesus Cristo não há possibilidade de se viver guiado pelo Espírito Santo. Por isso, é que tratamos de “espiritualidade cristã”, ou seja, da espiritualidade dos que “vivem em Cristo”. Esta vida supõe um crescimento integral, dia após dia, a fim de que a pessoa na sua integralidade de pensamento, sentimento, critérios e até o inconsciente, vá se configurando a Cristo, inteiramente.
Vandenbroucke define espiritualidade cristã “como a ciência da aplicação do Evangelho à vida do cristão, quer no plano intelectual, quer no ascético e no propriamente místico”. Na idade apostólica, tomar consciência da mensagem de Cristo, tanto no pensamento como na vida prática, tornou-se o eixo das comunidades cristãs.
Como já vimos anteriormente, a espiritualidade constrói a unidade da pessoa em torno do núcleo do espírito. Então, podemos dizer, com Duquoc, que a “«espiritualidade» designa a unidade vivida da existência humana na fé”. Portanto, a espiritualidade cristã, proporciona ao homem uma verdadeira visão espiritual do todo da vida, tendo Cristo como centro. Esta visão abrange também o cosmo como um todo. Pierre Cren, ao falar da relação entre cristão e mundo, segundo Teilhard de Chardin, se expressa assim:
A visão espiritual experimentou a verdade, porque atingiu finalmente a coerência do Real. Toda a experiência mística integral é síntese intuitiva da totalidade. Ela é percepção, num mesmo ato, do mundo e das relações entre eles. Ultrapassando, num movimento incessante, todos os dualismos imobilistas, ela aprende a unidade orgânica de todas as coisas em Deus. E, simultaneamente descobre com um único olhar que uma única e mesma aventura se continua desde o começo dos tempos até o aparecimento da nova Terra e dos novos céus...A criação não tem sentido fora de Cristo que nela Se encarna e a consuma e o significado da Cruz escapa a quem não vê absorvida na ressurreição e na constituição do Pleroma místico e cósmico até ao termo no qual «Deus será o tudo em todos»”.
Esta espiritualidade é profundamente envolvente, na medida em que o mistério de Cristo passa a ser a experiência fundante do cristão. Desta forma, o mistério pascal torna-se o fundamento da vida cristã, pois toda a novidade cristã consiste, justamente na participação na Páscoa do Senhor. O conceito Paulino de “vida em Cristo” (1Cor 1,30; Rm 8,1) traduz bem este envolvimento, pois nos remete ao conceito “ser em Cristo”. São Paulo repete 164 vezes a expressão “em Cristo”.
Viver em Cristo e ser em Cristo são conceitos que expressam uma espiritualidade muito prática e autêntica que marcou os primórdios do cristianismo, determinando a unidade vivida da existência humana na fé. A fragilidade está exatamente na perda desta unidade que deve perpassar a multiplicidade de experiências e ações pessoais e coletivas, funcionando como integração da pessoa, da sociedade e da cultura. O cristão corre o risco de perder o nó da sua unidade nesta multiplicidade de tarefas e funções a que é chamado. Nisto reside a originalidade do cristianismo, sem a qual a fé perderia toda a sua vitalidade. Nos anos 60 isto já era a grande preocupação dos pensadores cristãos, sob o impacto da complexidade de relações com o mundo. Já dizia Duquoc em 1966, que “esta incapacidade de integrar na fé a multiplicidade das tarefas e interesses... levou a repelir para a sombra as perguntas cruciais: «para que a oração, a liturgia, os sacramentos?»” É preciso experimentar na vida cotidiana aquilo que o cristão crê com o coração.Quase quarenta anos passados, hoje vemos que este processo se aprofundou e chegamos ao nível da fragmentariedade. Não se fala mais do homem confuso diante da complexidade do mundo, mas do homem fragmentado.
Portanto, a unidade da pessoa em Jesus Cristo é a experiência básica do cristão. O Evangelho é a revelação da Palavra encarnada, que misteriosamente passou entre nós. Santo Ambrósio afirma que “o anjo anunciara a Maria coisas misteriosas” . Portanto, vemos aí o início do Mistério Pascal de Jesus Cristo. A espiritualidade cristã não sobrevive de coisas comuns, mas do mistério que perpassa toda a passagem de Jesus Cristo entre nós.
E como se dá a unidade da vida cristã? Aqui está o ponto central da espiritualidade cristã. Como se trata da vivência como um todo, o Espírito conduz todas as dimensões da vida do fiel, de tal forma que alarga os seus sentimentos de amor à vida e à humanidade, como também de postura de humildade e disposição para a luta e para a oração. A homilia de um autor do século IV, já citada, diz o seguinte sobre as várias experiências vividas pelos cristãos:
Às vezes, desfazem-se em lágrimas e gemidos pela humanidade, pelo gênero humano elevam preces e choram...que, se fosse, possível acolheriam em seu coração todos os homens, sem distinção entre bons e maus...Pela humildade de seus espíritos colocam-se abaixo de todos...Por vezes são guardados pelo Espírito numa alegria inefável...Ora são revestidos como um valente que desce para o combate e os vence...Oram em absoluto silêncio, repousam a alma em paz...no perfeito contentamento...Por vezes são instruídos pela graça sobre coisas que a língua não consegue falar...E outras vezes, são como qualquer outra pessoa .
Guiados, desta maneira pelo Espírito Santo, os homens espirituais conseguem superar as contradições que São Paulo chama de “carne”. Ao fazer um apelo à unidade da comunidade dos Efésios, São Paulo aconselha-os a buscar a unidade do Espírito pelo vínculo da Paz (Ef 4,3). Compara a comunidade a um corpo, que deve amadurecer segundo a sua cabeça que é Jesus Cristo (Ef 4.4;14). Porém, ao falar a vida nova em Cristo, desce à raia do comportamento individual e, por conseguinte, à corporeidade de cada cristão. Se uma comunidade consegue construir sua unidade, é porque cada indivíduo, na sua integralidade, também o consegue. Não é possível construir uma comunidade verdadeira, se as pessoas que a compõem estão extremamente fragmentadas. Por isso, o Apóstolo dá normas muito práticas
sobre a austeridade da uma vida pautada pela verdade, que ordena até mesmos os sentimentos mais profundos. Toda a literatura paulina é um golpe à concupiscência do ter, prazer e poder. A integração de tudo isto na nova maneira viver se traduz como castidade. Normalmente esta virtude é vista quase somente como a continência ou pureza sexual. Porém, a palavra latina castus não sublinha somente esse sentido, mas também a virtude da lealdade, da honestidade e do desinteresse oblativo . Isto também deve ser entendido como aquela pureza que nos coloca como pessoas livres diante da vida.
Evidentemente este tipo de castidade não provém de forças humanas, mas da vida em Cristo. É neste sentido que Santo Ambrósio diz que “toda alma recebe o Verbo de Deus desde que, sem mancha e libertada do pecado, guarda a castidade com inteira pureza” . Aqui está a unidade que a espiritualidade cristã constrói em nós, a partir de uma vida em Cristo. Quando, ao contrário, aparecem as contradições gritantes entre as nossas palavras e a nossa maneira de viver, perdemos os sinais objetivos de uma espiritualidade cristã.
A vida de oração é parte essencial da espiritualidade cristã, mas não abarca a sua totalidade. Como vida guiada pelo Espírito, a espiritualidade é o resultado de uma vida em Cristo, onde também entra a dimensão do testemunho cotidiano como fator importante. Precisamos superar uma tendência, ainda em vigor, de entendermos exclusivamente espiritualidade a partir das práticas litúrgicas ou devocionais, ou ainda daqueles momentos em que nos isolamos para a oração, meditação ou encontros de natureza similar, como os chamados retiros espirituais, etc. A várias décadas, as definições de espiritualidade enfatizam a ação do Espírito Santo em todas as dimensões da vida cristã, e não apenas nos momentos de oração. Em 1965, A.M. BESNARD escreveu um artigo na Revista Concilium (n° 9), falando das tendências dominantes na espiritualidade contemporânea, onde afirmou que “a espiritualidade não é mais do que a estruturação de uma pessoa adulta na fé, segundo sua própria inteligência, sua vocação e seus carismas, por um lado, e as leis do universal mistério cristão, por outro”. As definições posteriores acatam e desenvolvem esta compreensão.
Segundo B. Frailing, “a espiritualidade cristã é a modalidade, levada a cabo pelo Espírito, da existência de fé na sua totalidade...condicionada historicamente”. Portanto, não se entende mais a espiritualidade cristã reduzida aos “momentos de oração”, mas abrangendo o conjunto da existência que compõe o tecido da vida do cristão conduzido pelo Espírito Santo. É a “vida em Cristo” (ICor 1, 30), marcada pela pascalidade da cruz e movida pela oração, pelas lutas e pelo sofrimento que conduzem à libertação. O que mais chamava a atenção aos pagãos e pensadores nos dois primeiros séculos de cristianismo não era a doutrina cristã, mas a atitude existencial dos cristãos, permeada pela fraternidade vivida nos grupos, juntamente com um testemunho de santidade que ia até o martírio. Certamente o que mais impressionou foi a firmeza e o heroísmo dos mártires. Porém no dia a dia o espírito de serviço, como durante a peste que se abateu em Cartago e Alexandria, dava aos cristãos uma tonalidade que não se via na maioria dos pagãos. Ainda, a vida casta entre os homens e mulheres constituiu um desafio que provocava, ao mesmo tempo em que mostrava uma alternativa existencial que se constituía numa inteira novidade cultural.

ESPIRITUALIDADE LITÚRGICA
Então, a espiritualidade cristã e o modo de vida em Cristo, que nos dá a unidade contra toda a fragmentariedade. Então, diante da pergunta: onde o cristão pode encontrar a fonte desta unidade, a resposta se encontra na mesma fonte em que beberam os cristãos verdadeiros de todos os tempos, sobretudo os dos primeiros séculos: na oração litúrgica da Igreja. Como vimos anteriormente, o que dá fundamento à espiritualidade cristã é a fé em Jesus Cristo. Essa fé é uma resposta integral ao amor de Deus trinitário e nos leva a uma decisão que se expressa numa atitude fundamental sobre a vida em todas as suas dimensões. Ora, a liturgia é o momento privilegiado de se refazer este ato de fé que engloba toda a vida, pois quando a Igreja celebra o mistério, faz também seu ato de fé. Podemos dizer que a liturgia é, de forma privilegiada, o lugar da fé. Se entendermos a fé como foi dito acima, então a liturgia é o lugar onde se rearticula a vida em todas as suas dimensões a partir da fé. Neste sentido, liturgia, fé e vida se completam.
É certo que, quando a liturgia não correspondeu à sua missão, entraram como apoio as “devoções” pessoais e coletivas, que nem sempre foram cultivadas em relação com a liturgia. Mas na verdade, toda espiritualidade cristã é litúrgica, pois a liturgia é a primeira e necessária fonte da qual os fiéis podem haurir o espírito genuinamente cristão (SC 14). No dizer de Larkin, toda a vida cristã é uma vivência do Mistério Pascal e consiste na passagem da morte à vida, sacramentalmente expressa na liturgia, e existencialmente vivida no cotidiano pelo processo de mortificação do egoísmo e de aprofundamento da caridade.
Portanto, é litúrgica a espiritualidade cristã que se alimenta sobretudo na fonte da liturgia, e para ela se encaminha, como cume da vida da Igreja. Esta afirmação se baseia naquele princípio que define liturgia como “momento histórico da salvação”. É por isso que uma pergunta central para o nosso estudo é: Qual a relação entre liturgia e salvação? A resposta direta nos dá a LG, quando diz: Sempre que no altar é celebrado o sacrifício da cruz, no qual Cristo, nossa páscoa, foi imolado (ICor 5,7), atua-se a obra da nossa redenção (Lg 3). Embora o texto esteja falando diretamente da Eucaristia, esse princípio vale para todos os sacramentos e, por extensão, aos sacramentais.
A carta do Papa João Paulo II por ocasião da Quinta-feira Santa de 2003, toca nesta questão ao nos lembrar que “este sacrifício é tão decisivo para a salvação do gênero humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para participarmos como se estivéssemos estado presentes”. E continua: “Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis...Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para a humanidade de todos os tempos”. O eixo operacional desta salvação funciona porque, ao oferecer o sacrifício pascal de Cristo, a Igreja e cada cristão se oferecem também, pois “participando no sacrifício eucarístico, fonte e ponto culminante de toda a vida cristã, oferecema Deus a Vítima divina e a si mesmo com ela”. Neste oferecer-se junto reside a nossa santificação. Neste sentido se expressa São Cirilo, em suas catequeses mistagógicas: Cristo foi verdadeiramente crucificado, verdadeiramente sepultado e ressuscitou verdadeiramente. Tudo isto foi por nós um dom da graça, a fim de que, participando da sua paixão através do mistério sacramental, obtenhamos na realidade a salvação. Ó maravilhado amor pelos homens! Em seus pés e mãos inocentes, Cristo recebeu os cravos e suportou a dor; e eu, sem dor nem esforço, mas apenas pela comunhão em suas dores, recebo gratuitamente a salvação.
O soldado, ao transpassar o lado de Jesus, diz São João Crisóstomo, abriu uma brecha na parede do templo santo, fazendo com que eu encontrasse um enorme tesouro. “....mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício”. A Igreja nasce então deste ato salvador de Jesus Cristo, “pois Cristo formou a Igreja de seu lado transpassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa”.
Sendo a Liturgia tão fundamental para nos colocar no compasso de Cristo e sob a unção do seu Espírito, “fixemos atentamente o olhar no sangue de Cristo e compreendamos quanto é precioso aos olhos de Deus, seu Pai, esse sangue derramado para nossa salvação...” Então, quando uma espiritualidade cristã é realmente litúrgica? Como já dissemos, quando é, por um lado, alimentada principalmente na fonte da oração litúrgica, e não apenas pelas devoções pessoais ou coletivas, e, por outro, quando conduz, através do testemunho diário e da busca da vivência ritual do Mistério de Cristo, ao cume da vida da Igreja, que também é a liturgia (fons et culmen – SC 10). Assim, há uma profunda conexão entre liturgia e vida, pois “...a liturgia foi compreendida pelos Padres não unicamente como culto, mas qual norma de vida”. Santo Agostinho diza respeito desse vínculo: “Felizes de nós, se o que ouvimos e cantamos também executamos.” A antífona do Canto Evangélico das Vésperas (03 de setembro) diz a respeito do Papa São Gregório Magno (séc. VI), reconhecido pelos seus méritos no campo da Liturgia: São Gregório praticava tudo aquilo que pregava e se fez exemplo vivo dos mistérios que ensinava.

CONCLUSÃO
Então, podemos dizer que a Espiritualidade litúrgica é a atitude ou modo de vida do cristão que, guiado pelo Espírito Santo e tendo como horizonte último o Reino definitivo, articula no presente a sua vida a partir da liturgia e celebra na liturgia a Páscoa de Cristo englobando também a sua vida. Conforme J. Catellano, a liturgia não pode ser um parêntesis desligado da experiência diária do nosso trabalho e apostolado. Corre-se o risco de isolar a oração cotidiana, tornando-a insignificante nas tramas da vida real, ou sacralizando-a como se o culto fosse a única dimensão eficaz para a construção da Igreja e o testemunho do Evangelho. Os fiéis participam do sacerdócio de Cristo, que dá origem à unidade indissolúvel entre liturgia e vida, valendo-se desse sacerdócio partilhado por todos, precisamente porque o exercem nas dimensões do culto e do oferecimento da sua vida inteira. Por isso, o trabalho diário adquire sentido litúrgico por seu vínculo indissolúvel com a oração da Igreja, e manifesta concretamente o amém dirigido pelos fiéis à vontade do Pai.
Uma liturgia, cume e fonte da vida da Igreja, torna-se também a fonte e o cume da missão. A liturgia sacramentava, sobretudo, para os cristãos primitivos um caráter fundamentalmente missionário, onde o batismo já constituía em si mesmo como “ato instituidor” da missão. Depois do impulso impressionante que Paulo deu à vida missionária, pois “como um rio ele contornava todos os obstáculos e banhava todas as terras”, a pregação se difundia sozinha, sem necessitar de ser instituída, uma vez que era movida somente pelo dinamismo da fé batismal. Os estudiosos não acham que se tratava de uma pregação pública nas praças, mercados, etc., mas de um cristianismo que “qual mancha de óleo, espalhava-se na rede da família, do trabalho, dos encontros”. Neste sentido, “conversão significava missão e fé. Então, as comunidades, em vez de chorarem o desaparecimento dos apóstolos, os imitaram, pois o patrimônio deles tinha sido confiado a elas.
Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa
Doutor em Liturgia e Professor na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção.